Em meio a uma grave crise fiscal, política e econômica, debatendo reformas na legislação trabalhista, tributária, na Previdência e na política, discutindo privatizações e a gratuidade das universidades públicas, o Brasil está de volta a 1989. Vale lembrar, em 15 de novembro daquele ano, os brasileiros foram às urnas para eleger um presidente pela primeira vez desde a recomposição democrática, seis dias depois da queda do Muro de Berlim. Depois da morte de Tancredo Neves e do fracasso do Plano Cruzado, de José Sarney, a inflação batia 45% ao mês no Brasil, enquanto o mundo se transformava com os desenvolvimentos na Hungria de Miklós Németh, na Polônia de Waleska, na Alemanha Oriental, na Praça Celestial, em Pequim, na União Soviética, com a perestroika de Gorbachev, e na África do Sul, com a reação ao regime racista do apartheid e o encarceramento de Nelson Mandela.
Naquele momento, a tônica do debate político no Brasil era de que vivíamos uma crise sem precedentes, o mundo se transformava e o país ficava para trás. Visto como inchado, burocratizado e ineficiente, o Estado era o principal alvo do discurso político brasileiro. As palavras de ordem eram abertura e reforma. Abertura para o mercado internacional e reforma do Estado e da sociedade, marcada por uma cultura estatizante e corrupta, a ser combatida pelo então "caçador de marajás", Fernando Collor de Mello.
De fato, a partir da segunda metade dos anos 1980, o Brasil passou por um amplo processo de reformas políticas e econômicas, que se daria ao longo de pelo menos duas décadas. Nesse período, o país modificou seu relacionamento com o mundo – tanto na política externa como na economia –, reformou seu modelo econômico de desenvolvimento e sua moeda (Plano Real) e consolidou um novo regime democrático, a partir da Constituição de 1988. O mercado brasileiro passou a importar e exportar mais, foi elevada a participação estrangeira na economia, foram estabelecidos acordos importantes de comércio, como o Mercosul, e o país modificou sua agenda, aceitando temas antes sensíveis como propriedade intelectual, meio ambiente e proliferação nuclear.
Não à toa, esse ciclo de reformas foi interrompido durante os quatro mandatos do Partido dos Trabalhadores (PT) na Presidência. Formado no desenvolvimentismo latino-americano industrial da Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe (Cepal) dos anos 1960, o PT esteve sempre do lado contrário às reformas liberalizantes, compartilhando posição semelhante a dos militares com relação ao modelo econômico a ser adotado no país. Além disso, a prosperidade econômica, em especial nos anos Lula, pode ter tido um papel não-reformista, apesar das promessas feitas na "Carta ao Povo Brasileiro", de junho de 2002, que previa as reformas previdenciária, agrária e trabalhista, entre outras mudanças. Embriagados pela popularidade, pelos lucros e pelo consumo, Estado, mercado e sociedade deixaram as reformas de lado. O Brasil crescia e aparecia na capa da Economist e como sede da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016, no Rio de Janeiro.
Com a crise econômica, é possível perceber a derrocada do governo Dilma e a volta do debate sobre as reformas como faces da mesma moeda. Não à toa, o tema das reformas está de volta após a falência de um regime heterodoxo para a economia. Trata-se de fato de um conflito de dois posicionamentos (esquerda e direita) que se constitui em uma tradição pós-1989. Dois problemas, no entanto, incidem sobre essa tradição: o caráter antidemocrático e o conservadorismo de ambos os polos do espectro político brasileiro.
O caráter antidemocrático está na truculência da velha UDN, no Golpe de 64, na emenda para a reeleição de Fernando Henrique Cardoso e no comportamento duvidoso que o presidente interino teve no processo de destituição da presidente eleita, com a complacência e o apoio da elite empresarial do país. O caráter antidemocrático está também no Estado Novo de Vargas, no comunismo, no aparelhamento, nos plebiscitos e na ideia de convocação de novas eleições, sem a devida razão constitucional.
Por sua vez, esquerda e direita no Brasil parecem cultivar uma certa dialética conservadora, com grandes prejuízos ao país, ao cidadão. Por um lado, o conservadorismo aparece no tecnicismo apolítico e na preponderância economicista do discurso liberal que coloca o argumento técnico acima do debate político-democrático e o mercado como prioridade à sociedade, sendo incapaz de incorporar a noção de oportunidades iguais e a provisão de bens públicos – educação, saúde, saneamento, justiça, segurança etc. – como ícones do liberalismo contemporâneo, ainda mais em sociedades injustas, como a brasileira. Por outro lado, o conservadorismo está também na incapacidade da esquerda de admitir a necessidade de reformas, na repetição de velhas fórmulas "heterodoxas" que já se mostraram inadequadas e na defesa do corporativismo e dos privilégios gerados pelo Estado a classes e setores específicos da sociedade. Nesse contexto, o que 1989 e a história nos ensina é que o "novo" pode ser apenas o velho muito bem disfarçado e o discurso das "reformas" serve, muitas vezes, apenas para deixar tudo como está.
Para saber mais leia "O Brasil depois da Guerra Fria: como a democracia transformou o país na virada do século" (Apicuri/PUC-Rio, 2013)